Explorada há muito tempo na literatura, no cinema e na telenovela como um filão inesgotável de enredos, a dupla personalidade é um fenômeno intrigante. Quem, ao assistir filmes como “Eu, Eu Mesmo e Irene” ou “Psicose”, não se espantou com a idéia, às vezes algo romântica, de um corpo que se vê obrigado ao convívio com duas mentes, quase sempre de índoles diferentes? Será que isso é coisa da ficção ou podemos viver uma dessas histórias de dicotomia na vida real? A psiquiatria vem pesquisando o problema e se empenhando em desmistificar a questão, ainda um tanto confusa.
Na vida real, a chamada dupla personalidade assume a alcunha médica de Transtorno Dissociativo de Identidade. A característica essencial do problema é a presença de duas ou mais identidades, que assumem o controle do comportamento alternadamente. “Não existe mais esse diagnóstico de múltiplas personalidades na psiquiatria”, afirma o psiquiatra Hector Vacca, professor da PUC-SP. Ele explica que o problema tem origem no fracasso de integrar os vários aspectos da identidade, da memória e da consciência. “As causas podem ser variadas. Um abuso na infância, por exemplo, uma repreensão muito grande experimentada que, para esquecê-la, a pessoa gera outra personalidade diferente. É sempre uma reação a uma vivência”, conta.
Uma personalidade tem asma, a outra não. Uma tem alergia, a outra enxerga pior. Não é comum, mas pode ocorrer
Cada estado de personalidade pode ser vivenciado como dono de uma história pessoal distinta, inclusive com nomes diferentes. Em geral, há uma identidade primária, portadora do nome correto do indivíduo, quase sempre depressiva, passiva e culpada. “As identidades contrastam entre si. Há sempre uma mais hostil, participativa e controladora em contraponto com a principal, digamos assim. Podem existir também as identidades que emergem em situações específicas, muitas vezes diferentes em idade ou gênero, vocabulário”, comenta Hector. A psiquiatra Dalila Assunção acrescenta que existem relatos até mesmo sobre a variação de funções fisiológicas. “Uma personalidade tem asma, a outra não. Uma tem alergia, a outra enxerga pior. Não é comum, mas pode ocorrer”, enumera. Embora um caso raro, um indivíduo pode desenvolver até uma centena de identidades, mas a média fica em torno de dez. As mulheres tendem a ter mais personalidades que os homens.
A transição de uma para a outra se dá geralmente de forma súbita e dramática e alguns indivíduos podem manifestar sintomas pseudoconvulsivos nesse processo. “Existem casos em que as identidades se conhecem, sabem sobre si, e outros em que isso não acontece. Elas podem se comunicar por vozes, que o paciente escuta, criticando umas às outras e entrando em conflito. Algumas vezes, uma ou mais identidades agressivas interrompem atividades para colocar outras em situações incômodas”, conta Dalila. Lacunas de memória também são muito comuns a quem possui o transtorno, sobretudo relacionadas às lembranças da infância.
Difícil identificação
O diagnóstico do Transtorno Dissociativo de Identidade é especialmente difícil porque raramente o problema vem sozinho. A princípio, a questão pode ser tomada como delírio, alucinação auditiva, alteração de humor ou ganhar até outros diagnósticos como o de Transtorno Bipolar ou somatização. “É um processo longo, o período médio entre as primeiras aparições sintomáticas e o diagnóstico é em torno de sete anos. Em casos em que o curso do distúrbio é episódico, fica ainda mais difícil”, garante Hector Vacca. Em crianças e jovens, o processo ganha complexidade extra, já que as manifestações são menos nítidas. “São confundidas com fantasias”, explica o psiquiatra. O Transtorno Dissociativo é diagnosticado com maior freqüência entre as mulheres.
O tratamento se baseia em medicamentos e terapia, com foco na resolução do trauma original. “As dificuldades de diagnóstico comprometem também o estudo sobre o transtorno. A hipnose é muito utilizada durante o tratamento, mas ainda não há um método definido. O processo de desvencilhamento das personalidades costuma durar cerca de cinco anos”, diz Hector, lembrando que o problema costuma se manifestar com menos freqüência depois dos 40 anos.