Nos quadrinhos de Maurício de Sousa, a aversão do personagem Cascão à água pode ser entendida como um gosto excêntrico pela sujeira, mas pode ajudar a ilustrar um tipo de alergia raríssima que já atingiu pelo menos 1.000 pessoas desde que foi diagnosticado pela primeira vez, nos anos 1960: a urticária aquagênica, ou, em termos gerais, uma alergia nociva à água.
É difícil imaginar como um ser humano pode desenvolver algo desse tipo. Afinal, nosso corpo é composto basicamente de 70% de água. Precisamos beber pelo menos dois litros por dia desse líquido para ter algo próximo a uma vida saudável.
Se a água está em todo lugar, inclusive dentro de nós, como um indivíduo com urticária aquagênica pode sobreviver?
Mesmo com uma doença hipersensível à água, é possível viver, sim, com essa urticária, mas com restrições. Muitas restrições.
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Não mais que dois minutos
A jovem Alexandra Allen, que tem 18 anos e vive em Utah (EUA), é um dos mais conhecidos casos com a doença. Em entrevista à New York Magazine, ela disse que teve que readaptar seus hábitos a partir do momento que descobriu a aversão, aos 12. Ela diz que é mais um problema de pele do que doença, em si.
Alexandra toma banho apenas duas vezes por semana, pois não pode ficar mais que dois minutos em contato direto com a água. Quando isso acontece, ela diz ter coceiras intermináveis, com efeitos que parecem de queimaduras. Para se higienizar, por exemplo, limpa as mãos com produtos desinfetantes. “Faço um monte de coisas estranhas para me manter limpa”, revelou.
Ela, que tinha cabelos longos, passou a adotar um modelo mais curto. Nem mesmo maquiagem ela pode usar direito: “sou alérgica à maioria desses produtos, porque contêm água”.
Alexandra evita suar, para não ficar com vermelhidões pelo corpo. Até mesmo o ar úmido pode irritá-la: “Fui recentemente ao Camboja e a umidade era tão intensa, que fiquei com alergia do ar”. Lágrimas também podem fazer com que a urticária se manifeste.
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Origem e causas
O primeiro diagnóstico de urticária aquagênica foi documentado em 1963, quando uma mulher de 15 anos da Pensilvânia (EUA) intrigou os dermatologistas após chegar com o corpo irritado, cheio de lesões, após uma sessão de esqui aquático. A partir de então, cada banho era um sofrimento.
De acordo com uma pesquisa do Indian Journal of Dermatology (Jornal Indiano de Dermatologia), “os sintomas podem ser sentidos imediatamente após o contato com a água e persistir por uma hora ou mais. Em algumas famílias, existe uma tendência da urticária aquagênica ser hereditária”.
A pesquisa cita uma paciente de 38 anos que não teve o diagnóstico correto e passou por diversos especialistas, como psicólogos, psiquiatras e infectologistas. Eles disseram que ela poderia ter algum problema venéreo, como hipocondria e depressão grave, mas o fato é que as consequências de hábitos comuns como tomar banho ou lavar as mãos estavam danificando tanto a sua pele, que causou danos psicológicos.
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Fobia do banho
Pessoas que não sabem que têm urticária aquagênica tendem a manter uma rotina considerada ‘normal’, e isso pode ser bem perigoso. Existe o risco de se desenvolver não só uma fobia pelo banho, mas choques anafiláticos graves (quando o paciente tem uma reação extrema por conta da alergia, com dificuldades para respirar e grandes inchaços pelo corpo) devido ao contato insistente com a água.
A publicação indiana diz que as verdadeiras origens dessa doença são desconhecidas. Farmacologistas, porém, afirmam que pode haver uma relação com altos níveis de acetilcolina na pele (moléculas que atuam na passagem do impulso dos neurônios para as células musculares).
Há, também, a possibilidade de relações com outras condições graves, como hepatite C e linfoma de célula T, tipo de mutação que afeta diretamente a defesa do organismo.
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