Na calada da noite

por | jun 30, 2016 | Notícias

Em busca da tão sonhada qualidade de vida – que traz em si a idéia de saúde em dia; horários regulares sem atropelos de afazeres; casa própria; um carro seguro; uma boa renda familiar; tempo para o hobby preferido; horas livres para brincar com as crianças e tranqüilidade financeira, no final do mês, para pagar as contas –, o dinheiro parece fazer-se cada vez mais indispensável e inerente à rotina moderna. Só que dinheiro ainda é sinônimo de trabalho. Muito trabalho, mesmo durante a noite ou até durante a madrugada.

Seja para complementar a renda ou mesmo para ganhar o famoso “adicional noturno”, que em alguns casos chega até 40%, cada vez brasileiros trabalham à noite, permanentemente ou em turnos rotativos, como é o caso da auxiliar de serviços gerais, Geciléia Faria – que trabalha na empresa de manutenção de limpeza  NovaRio, da meia-noite às sete da manhã. “Chego em casa, em torno das oito e meia da manhã. Preparo almoço, deixo as crianças no colégio, arrumo a casa. Às duas horas da tarde, vou dormir até as nove, quando meu marido, que chega do trabalho às cinco da tarde, me acorda para eu ir trabalhar e ele dormir, pois sai para o trabalho todos os dias às cinco da manhã”.

Divertida, Geciléia conta seu dia-a-dia com muita descontração. Mas confessa que faz isso porque apenas com o salário de entregador de frigoríficos do marido, não é possível assumir todos os gastos da casa e dos dois filhos. “Quando mais novas, as crianças não entendiam direito e perguntavam por que só a mãe deles não dormia em casa à noite, mas quando viram que passamos a ter mais dinheiro para fazer as coisas, passaram a compreender a situação”.

Mas há ainda quem faça do horário noturno uma possibilidade de ascensão profissional, como o jornalista e apresentador Erick Bang. Durante o dia, ele é campeão de audiência frente à WebTV, da Petrobrás, e, de madrugada, da meia-noite às seis da manhã, edita os vídeos da GloboNews, que irão ao ar no Globo Media Center, da TV Globo. Erick acredita que suas chances de brilhar nas telinhas globais aumentem muito, ainda que esteja na emissora sempre na calada da noite. “Só, hoje, um ano e meio depois, posso dizer que me acostumei com o meu horário. Mas, devo confessar, só agüento este ritmo há tanto tempo, porque realmente faço o que gosto, se não seria insustentável! E, realmente, acredito que minhas chances na bancada de um telejornal aumentem muito, mesmo estando presente em um horário que quase ninguém passa por aqui”.

No entanto, para o terapeuta empresarial Ricardo Estavam, esse esforço muitas vezes pode não valer a pena. “O trabalho de quem trabalha à noite some na massa. Na empresa em que estou prestando consultoria, a promoção à diretoria dos funcionários que trabalham durante o dia foi muito mais rápida em relação aos da noite. Sem falar do sentimento de menos valia e baixa estima, na maior propensão a deprimir, na diminuição da libido e na diminuição ou aumento significativo do apetite, devido às alterações metabólicas”, revela.

Relógio biológico desregulado

Os ramos de atividade que mais utilizam trabalho noturno são transporte, saúde, limpeza, segurança, energia e comunicações. Como os relógios biológicos se desregulam, os trabalhadores de turno têm problemas tanto para dormir durante o dia como para permanecer acordados no trabalho. Essa perturbação cronobiológica chega a prejudicar de 5% até 10% o rendimento dos trabalhadores, constituindo o Transtorno de Sono por Trabalho em Turno (TSTT).

Segundo um estudo publicado no New England Journal of Medicine este mês sobre trabalhadores com TSTT, o teste com o estimulante usado em distúrbios do sono como a narcolepsia, o modafinil, vem apresentando resultados significativos. Do grupo que recebeu o estimulante, 74% referiram melhora da sonolência contra 36% dos que receberam placebo. Mas, mesmo no grupo tratado, a sonolência excessiva residual mostrou-se significativa. Os relatos de acidentes ou quase-acidentes no percurso de volta para casa – o momento de maior perigo do trabalhador noturno – sofreu redução pelo medicamento de assustadores 54% para 29%, um número menor, mas nada tranqüilizador. Os autores da pesquisa não consideram os resultados satisfatórios, a ponto de beneficiar significativamente os trabalhadores com este transtorno.

O diretor geral do MOTE, empresa especializada em serviços psicológicos, Roberto Barcellos, afirma que quem se arrisca não apenas à inversão do dia pela noite, mas também a jornadas nos dois turnos, está sujeito a um estado de estresse constante. “Porque o indivíduo não está fazendo apenas uma inversão de turnos, mas uma alteração permanente no ciclo de sono e vigília. Ele rompe não apenas com os referenciais de dia e de noite, mas efetua uma alteração na estrutura desse ciclo que é basal. Este é o estressor maior”.

Isso tudo sem falar na vida pessoal! “Na semana em que minha mulher dá plantão, prefiro nem falar muito com ela, porque o humor é pior do que nos dias de TPM”, diz o antiquário Pedro do Amaral, marido da médica Cristina do Amaral, que, às vezes, chega a dar quatro plantões por semana. “Sem contar as reclamações de que a pele está cheia de espinha, de engordar por comer mais e não ir ao banheiro regularmente… Realmente, só amando pra agüentar!”, brinca Pedro.

Para o psicólogo Roberto Barcellos, as alterações na pele, no ciclo menstrual e no humor são reações psicossomáticas, que funcionam como um alerta do organismo, para sinalizar a carga de estresse a que ele está sendo submetido. “Não há nada que possa restabelecer o equilíbrio natural do organismo além de uma boa alimentação e horários regulares de sono. Ainda que alguns médicos apelem para medicamentos, para mim, isso é apenas mais um apelo de interesses à indústria farmacêutica”.

É… Definitivamente, a qualidade de vida parece ter se apropriado da paz de espírito! Ou seria da paz financeira?!