O saco de lixo preto leva a sobra daquilo que não foi comercializado durante o dia no varejão do terminal da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais (Ceagesp), em São Paulo – o maior entreposto de abastecimento de frutas, legumes, verduras, flores, pescados e diversos da América Latina. Em volta de uma caçamba, pessoas vasculham e separam cabeças e carcaças de peixe ao final da noite, atrás das barracas e próximo às mesas onde são servidos lanches e petiscos ao público geral. Ali, não circula dinheiro, nem há atendimento ao freguês – afinal, o que não presta para ser vendido na banca é jogado lá. Foi neste baú que o desempregado Ednaldo Eugenio Nascimento, 46 anos, conseguiu separar quatro cabeças de peixe para levar para casa, “bom para fazer caldo”.
“Não é muito, muito ruim. Dá para improvisar”, comenta Erika Ferreira, 23 anos, que também está sem emprego e seleciona cerca de 2 quilos de peixe para colocar na sacola. “A gente pega porque está precisando, porque nossa família tem mais de 30 pessoas”, conta em entrevista ao Vix, ao lado das primas, a dona de casa Sabrina Ribeiro dos Santos e a atendente de lanchonete Shirley dos Santos.
A prática é proibida (veja posicionamento completo da Ceagesp abaixo) e nem sempre 100% segura – segundo infectologistas – apesar de todos os entrevistados para essa reportagem afirmarem que nunca passaram mal depois de ingerir os alimentos que coletam. Entretanto, tirar comida do lixo para levar à mesa nos leva a um questionamento mais profundo e, de certa forma, vergonhoso: por que o que é sobra para alguns é comida para outros?
Apesar de o Brasil ter saído do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2014, a desigualdade de acesso à comida, cada vez mais cara nas prateleiras de supermercados, é abismal. Não à toa, Governo, profissionais, entidades sociais e assistenciais e pessoas comuns se empenham tanto em ações de distribuição de alimentos para evitar o desperdício e, ao mesmo tempo, alimentar a boca de muita gente que não tem condições de comprar frutas, verduras e legumes.
Nesta matéria, a ideia é que, juntos, possamos entender parte do caminho do alimento até nossas mesas e os diversos ‘atalhos’ que ele pode tomar. O aproveitamento total da comida, as perdas durante o transporte e a história das pessoas que vivem da sobra são, essencialmente, um convite para discutirmos como uma necessidade básica – a alimentação – tem importantes e problemáticos lados no Brasil.
Sobras alimentam família com sete pessoas
A dona de casa Maria Quitéria Silva, 49 anos, circulava pelas barracas do varejão antes mesmo de o espaço abrir para os consumidores. “Eu venho mais cedo, às 13 horas, e já pego aquilo que sobra: pimentão, tomate, batatinha”.
Esta é a primeira sobra do dia. Segundo os produtores dos alimentos e feirantes, assim que eles começam a dispor as frutas, verduras e legumes na barraca já é feita a separação daqueles que não têm condições de venda.
E é à procura deste material que a dona de casa circula entre as bancas da Ceagesp por, no mínimo, oito horas. “Venho e volto de ônibus, porque um motorista me dá carona. Então, pego o que tiver para fazer sopa, salada, o que der; são sete pessoas para alimentar”, explica. “As coisas estão muito caras e desde que comecei a sentir dor na minha perna, não consigo mais trabalhar. Só recebo R$ 80 de ajuda de custo, não tenho dinheiro nem para comprar remédio, muito menos para comprar comida”.
No dia em que o Vix visitou a Ceagesp, Maria Quitéria não teve tanta sorte. Depois de buscar algumas sobras pelas barracas, precisou ir à caçamba repleta de folhas e pedaços de caixas de madeira e, por fim, à de peixes. Foi embora por volta das nove da noite, enquanto as barracas já eram desmontadas, com uma amiga de bairro.
Uma rotina atrás das sobras
A aposentada Maria Aparecida Fernandes, 69 anos, vai todas as quartas-feiras à Ceagesp recolher comida de graça há seis anos.
“Levo chuchu, batata, cenoura, encho o carrinho. Parei de trabalhar e não dá para viver com uma aposentadoria de R$ 400. Então, venho pegar as frutas, verduras e legumes.
Geralmente, circulo das quatro e meia às nove da noite. Pego tudo limpinho e, para não sujar, coloco uma sacola plástica na mão como se fosse uma luva.
Quando chego em casa, lavo tudo muito bem. Uso vinagre para limpar o peixe e congelo o que não for usar. Já os alimentos que têm casca eu coloco no cloro. Moro com minha filha e meu genro. Eu percebo que a cada ano vem mais gente pegar comida aqui na caçamba”.
Aspecto de alimentos para consumo
Quem está acostumado a frequentar feiras livres ou a própria Ceagesp tem um olhar atento às alterações de cor e textura dos alimentos. Sabe aquela maçã lustrosa, lisinha e com um aroma que se espalha entre as barracas? Esta é a definição de uma fruta pronta para consumo, fresca e, por tudo isso, atraente para o consumidor.
O que aparece com manchinhas, amassados e sinais de queimadura ou de desgaste pode ser uma mercadoria não vendável – ruim para o comerciante, ruim para o freguês, que está atrás de produtos de qualidade. Por isso, parte do que é descarregado dos caminhões é colocado de escanteio.
“Assim que montamos a barraca, vemos o que vai sobrar. Se a banana tem um machucadinho, por exemplo, nós separamos e vendemos em um saco de 3 quilos por R$ 3,00”, afirma o feirante Rildo Tenguan, 49 anos, que atua no ramo há mais de 30 anos. “Muitas pessoas compram não para consumo próprio, mas para dar para passarinho”.
Segundo o feirante Mauricio Damaceno Ferreira, 30 anos, o mamão é uma das frutas mais sensíveis ao toque, o que gera, a cada feira, uma sobra significativa do produto. Qualquer movimentação mais brusca no transporte das caixas do papaia, como ele explicou, pode comprometer a qualidade e a aparência da fruta.
“No caso do mamão, a perda é quase 100% por causa do transporte. Ele vem embalado, com papel, mas acaba amassando. Aí, o pessoal passa e pega para levar para casa, porque o consumidor não gosta de fruta amassada”.
E as folhas, que muitas vezes vemos jogadas no chão ao final da feira? Segundo o feirante Gilmar Gerônimo, 42 anos, manchas são critério de eliminação de muitos pés de alface da barraca. “Se está manchadinho, não dá. Então, deixamos no chão para a equipe de limpeza vir recolher”, explicou, enquanto jogava fora algumas caixas da verdura. “Também descartamos folhas de brócolis, por exemplo, e as pessoas pegam para comer”.
Gilmar comenta que tudo é colhido no mesmo dia em que é vendido. Entretanto, como o varejão acontece com um intervalo entre quarta-feira, sábado e domingo, pouca coisa dura até a próxima venda – o que também interfere no volume de alimentos desperdiçados em cada feira.
Prática proibida
Em nota, o coordenador de Sustentabilidade da Ceagesp, Jae Young Ahn, informou que a Ceagesp possui normas internas que proíbem a coleta de qualquer tipo de produto de suas caçambas, por motivos de segurança alimentar. Ele afirmou que a fiscalização dessa prática é feita por meio de uma equipe e placas educativas.
Informou ainda que, a partir do momento que é jogado no compartimento, o alimento se torna impróprio para o consumo, pois já está contaminado. “Não é seguro que essas pessoas consumam esse tipo de alimento, por ferirem as normas de segurança alimentar”.
Quanto à destinação desses produtos descartados, Jae informou que a empresa responsável pela coleta na Ceagesp retira esse material e parte dele é usada para adubo orgânico ou ração animal.
Quais são os riscos de contaminação?
De acordo com a infectologista Raquel Muarrek, consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), não é indicado que as pessoas retirem o alimento que será servido à família das caçambas pelo risco de contaminação do alimento.
“É preciso considerar o que entra em contato com isso, como xixi de rato e outros animais. Ao consumir, a pessoa pode ter reações como diarreia, desidratação, febre e vômito, pois pode ter salmonela, entre outras toxinas, parasitas e vírus”, explica a especialista.
Ao mexer nas sobras de alimento, os frequentadores podem ainda ter doenças de pele, relacionadas a fungos, e tétano, pelo contato com o material do compartimento.
Alimentos que estão sem casca podem ser ainda piores para a saúde, “pois esse fator diminui o tempo de conservação”.
Apesar de o cloro utilizado para a limpeza do material recolhido ser indicado para este fim, segundo a infectologista, é importante saber a proporção para diluí-lo em água. “Já o vinagre não tem um critério de eficiência na limpeza”.
Banco de Alimentos da Ceagesp: um dos caminhos da sobra
Na venda por atacado, pela qual a Ceagesp é tradicionalmente conhecida no País e no mundo, a própria empresa mantém um serviço de coleta e doação daquilo que não é vendido ao consumidor, o Banco de Alimentos. Criado em 2003, o sistema contorna o desperdício dos alimentos que já amadureceram ou não cumprem mais os requisitos para comercialização.
Este serviço não é feito nos dias em que é realizado o varejão, às quartas, sábados e domingos. Por essa razão, o material fica exposto nas caçambas nas quais encontramos os personagens do início da matéria.
De acordo com Jae, o residual destas vendas é “em quantidade irrisória e já está no ponto maduro”, o que dificultaria a logística para doação às entidades.
“No atacado, por mês, são 150 toneladas de alimento entregues a instituições cadastradas”, explica. “É um número pequeno, comparado à quantidade que ainda vai para o lixo. O nosso foco, entretanto, é evitar o desperdício do mercado e reduzir as perdas e a fome social”.
Como funciona
As sobras chegam ao Banco de Alimentos por meio dos próprios atacadistas e pela atuação de 5 mil carregadores que circulam pelo entreposto de São Paulo e, ao perceberem frutas, verduras e legumes que sejam próprios para doação, encaminham até o projeto. Lá, ainda é feita a seleção daquilo que pode ser aproveitável para consumo e do que pode virar adubo orgânico, tarefa realizada por uma empresa terceirizada.
Não é só na feira que há desperdício, você também faz parte do problema
O consumidor final também tem seu papel neste sistema de desperdício de comida que se mantém em nossa sociedade. Comprar mais do que precisa e jogar fora talos, cascas, sementes e folhas – o que quase nunca é associado a desperdício – são duas das atitudes mais básicas que você deve repensar. Este é um alerta do ONG Banco de Alimentos, que tem ações educacionais, de redução da fome e de consciência sobre o fim da cultura do desperdício.
Afinal, apesar de todos os esforços para redirecionar o alimento não usado e de programas de incentivo ao consumo consciente, segundo estimativa do Instituto Akatu, 41 mil toneladas de alimentos são desperdiçadas no Brasil, por dia, o que poderia alimentar 25 milhões de pessoas. A perda acontece em todas as partes da circulação do alimento – e, infelizmente, resulta na tentativa de algumas pessoas em buscar as sobras em sacos e caçambas de lixo.
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