BM – Como você entrou na faculdade de Sociologia?
GL – Eu entrei na USP em 1969, antes de tudo isso. Aí, muito idiota, fiquei grávida. Ia pro médico para fazer aborto e perdi a coragem. Tive minha filha e tive que abandoná-la porque já trabalhava durante o dia e tinha que ajudar minha mãe. Minha mãe começou a me controlar por aí. Ela era muito rígida e dizia: “de noite você tem que estar com a tua filha”. Depois saí da Shell e fui para a prostituição. Fiquei um tempo nessa vida sem fazer mais nada e depois voltei a estudar. Estudava e vivia na prostituição. Eu me entusiasmei tanto com a vida das prostitutas e com aquela coisa de você ser tão marginalizada que resolvi que queria entender melhor da história e não ser uma babaca. Se fosse hoje, não seria socióloga e sim historiadora.
BM – Você abandonou a prostituição quando se formou?
GL– Eu só deixei a prostituição em 1990, aqui no Rio, porque eu fui convidada a falar em público. Além de socióloga, virei uma prostituta que vai dar entrevista na televisão toda hora, a “prostituta de plantão”. Nesse meio tempo, eu fui convidada para participar de um seminário sobre mulher no colégio Bennett e lá encontrei o Rubem César Fernandes. Ele estava coordenando a mesa e me perguntou se eu não queria sistematizar todo o meu trabalho dentro de uma instituição. E eu tinha um sonho de fazer um encontro nacional de prostitutas e aceitei. Foi o Rubem quem me ensinou a fazer projeto e um monte de coisa. Conheci o Flávio, na ONG Iser. O Flávio era responsável pelas publicações da organização. Aí num ano eu continuei morando na zona, indo pra lá de noite e trabalhando de dia no Iser. Nessa época, ainda não namorávamos, éramos amigos. Daí chegou um tempo em que não dava mais e fiquei um século andando com uma sacolinha com minhas roupas e dormindo nas casas das pessoas amigas porque eu não tinha casa. Não tinha coragem de começar tudo de novo, mudar de vida totalmente. Nessa época, consegui fazer o primeiro encontro de prostitutas a nível nacional, recebemos uma verba de uma instituição da Suíça. Aí começamos a organizar um movimento nacional.
BM – Fale desse movimento:
GL – Hoje nós temos 88 associações. Não tem uma sede, existe uma rede para a gente se coordenar, ela se chama Rede Brasileira de Profissionais do Sexo. Cada associação tem sua própria autonomia. Temos um jornal chamado “Beijo da Rua”.
BM – E ela abrange travestis também?
GL – É. Travestis, michês, os que quiserem. Agora os travestis estão criando sua própria rede. Eles têm algumas peculiaridades que não têm a ver com a gente. Eles estão certos. A nossa rede é mais de mulher mesmo.
BM – E o “Da Vida”?
GL – O “Da Vida” é uma ONG que a gente criou quando saiu do Iser. O Flávio, nessa época, já estava comigo e me ajudou na criação dessa ONG que tem a finalidade de assessorar as associações e promover cursos de capacitação profissional.
BM – Capacitação profissional seria algo para tirar a prostituta do ofício?
GL – Não. Nós, do movimento de prostitutas, somos o primeiro grupo a trabalhar diretamente com o Ministério da Saúde nos projetos de prevenção de AIDS. Então, precisa capacitar as meninas da associação, que não conhecem nada além da prostituição, sobre como fazer e desenvolver um projeto para o ministério e prestar contas também. Isso tudo é político. Queremos que as associações sejam um negócio profissional, a gente já é tão discriminada e, se a gente ainda tem uma associação que não faz as coisas direito vão pensar é “porque é puta”.
BM – O que acontece com a prostituta que fica doente? Vocês têm alguma verba para auxílio?
GL – Isso vai depender da associação. Aqui, na Vila Mimosa, hoje em dia ela está transando um dinheiro por mês e uma cesta básica para três meninas que estão com HIV. Se uma menina tem um outro problema, a associação interfere junto à cafetina para ela continuar trabalhando na casa depois que voltar. Agora, não paga nada porque você é autônomo para caramba, né? Você tem que ter o seu dinheiro. A coisa do HIV é diferente porque é mais complicada. Por exemplo, a nossa associação tem até um consultório dentário e estamos procurando um plano de saúde para nos associarmos em grupo.
BM – Quantas mulheres trabalham na Vila Mimosa?
GL – 1080 mulheres.
BM – Fale sobre a distribuição de camisinha.
GL – Tem uma história de marketing social lá. A gente compra uma camisinha muito boa, a de marca Prudence, a preço de custo para as meninas, ou seja, cada unidade sai a R$ 0,15. Recebemos um subsídio americano. A gente faz o dinheiro multiplicar para comprar mais camisinha. Não queremos que falte. O ministério também dá camisinhas de graça, inclusive a feminina. A gente está trabalhando o Brasil todo com ela.
BM – Fale da questão da AIDS.
GL – Mundialmente, o índice de AIDS na prostituição não é alto como é no meio das mulheres em geral. Hoje em dia, você sabe que a grande questão da AIDS é a mulher em geral, a mulher “normal”. Sabe como é a história. Você pára na Rua Augusto Severo e vê um monte de homem com aliança e terno que não gosta de usar camisinha. Hoje em dia, a grande questão da AIDS é a mulher. As três linhas da AIDS são a pauperização, a juventude e as mulheres. Os menores índice de AIDS hoje são dos tais grupos de risco de antigamente. Essas pessoas foram as primeiras a trabalhar com prevenção.
BM – De onde vem as verbas para o “Da Vida”?
GL – O Ministério da Saúde dá uma verba que é insuficiente. O Comunidade Solidária também. Temos também dois financiamentos externos: das prostitutas de Berlim e dos Estados Unidos, que é algo mais específico por conta de um projeto com jovens que a gente tem para que atuem na indústria do Carnaval. Esse projeto era só para filho de prostituta e depois a gente achou que estava fazendo preconceito ao contrário e abriu. Essa verba que vem dos americanos é destinada a ensinar esses jovens a fazer fantasias, adereços e tudo que você pode imaginar.
BM – As prostitutas do “Da vida” colaboram mensalmente com a ONG?
GL – Não. As associações pagam. Quem quer se cadastrar – não é obrigatório – paga uma taxa. É como um sindicato, só que a profissão não é reconhecida. Uma das nossas brigas principais é o reconhecimento da profissão. Acredito que não vou ver isso porque você esbarra em aspectos morais seríssimos. Como a gente não pode ter sindicatos, a gente tem associações. A gente está fazendo até jurisprudência a respeito disso. Na hora que o ministro da Previdência transar o INSS, a gente já criou jurisprudência para o reconhecimento. A gente vai por aí. Temos uma advogada que nos ajuda, a Esther Kosovsky, que sempre diz para a gente ir pelas beirinhas, entendeu? Vai se criando jurisprudência e a profissão se reconhece automaticamente. Por exemplo, as do Uruguai já são reconhecidas. É o único país da América Latina que a profissão é reconhecida. Por que? Porque o Uruguai é um país light, nunca a Igreja foi ligada ao governo.
BM – E onde moravam teus filhos? Em São Paulo?
GL – Todo mundo em São Paulo. A minha filha mais velha morava com a minha mãe e depois se casou. A minha filha do meio e o meu caçula ficaram com os pais porque perdi a posse deles na Justiça por conta da coisa da prostituição. Eles juntaram entrevistas que tinha dado à revista “Isto É” e ao jornal “Folha de São Paulo”. Eu, nessa época, já estava no Rio. Eles ficavam me ameaçando e, quando tiveram provas, foram para a Justiça.
BM – A prostituta corre o risco de se apaixonar pelo cliente?
GL – Acontece, pouco, mas acontece. Normalmente é uma paixão que não dá muito certo. O cara quer que ela saia, o cara fica prendendo porque ela era puta, umas coisas assim. Ele morre de ciúmes. Mas ela acaba não agüentando e volta. Raros casos, que eu conheço, deram certo. Uma história dessas dura, normalmente, meses. Agora, prostituta quando se apaixona, geralmente, é por alguém que ela não conheceu na zona.
BM – A prostituta sente-se sexualmente desestimulada na hora que vai transar com seu companheiro?
GL – Não. É diferente. Você fica de saco cheio daqueles caras todos. Você também não fica com aquela história “ah, preciso paquerar e tal” pois você tem tanto homem e de tudo quanto é tipo a tua disposição. Mas, se você tem um companheiro é diferente. Prostituta não goza com o cliente, nem dá beijo na boca. No mundo inteiro, você sabe que isso é uma característica, prostituta não beija cliente porque é o mais íntimo seu. Por ser a profissão mais antiga do mundo, ela tem características comuns do mundo inteiro. Nenhuma prostituta fica fazendo carinho em homem, nada disso. É transar e pronto. O cara gozou e acabou. É claro que se você trabalha numa termas de alta classe e o cara está te pagando mil reais, você até dorme com ele. É justamente por isso que eu nunca gostei dessa alta prostituição.
BM – Você estimularia as suas filhas a seguirem essa carreira?
GL – Para você imaginar, a minha filha do meio esteve aqui com a gente há uns dois anos, ela brigou com o pai dela. E ela não gostava de fazer nada. Nem de estudar, nem de trabalhar, nem de porra nenhuma. Eu cheguei para ela e falei: “Eu acho que você deveria trabalhar na prostituição pelas coisas que você gosta. Você é uma mulher muito bonita. Estou sendo honestíssima com você”. Ela é uma mulata clara, lindérrima. E aí ela olhou para mim e disse: “Que isso? Eu não sou vagabunda”. Aí, foi só eu falar isso com ela, ela arrumou as malas e voltou pra São Paulo.
BM – O que você achou da Capitu da novela Laços de Família? Muito folclórica?
GL – Desde menina assisto novela e sempre tem prostituta. Nessa nova das oito tem a Glória Menezes interpretando uma péssima cafetina. Ela não está bem no papel. Nunca vi a prostituta ser tão mal tratada como na figura da Capitu. É horrível. O Manoel Carlos deve ter altos preconceitos. Com esse nome lindérrimo, deveria ser uma senhora prostitua. Mas ela tinha medo de tudo, preconceito contra tudo, o homem que ela encontrou era um bandido, o marido que ela tinha era também bandido e ela estava a procura do príncipe encantado que ela encontrou no final da novela. Uma personagem completamente idiota, boba. No começo estava legal. Sei lá, foi pressão. No começo da novela, fiz até um comentário sobre isso para o caderno B do Jornal do Brasil. Eu falei: “ela tá saindo uma prostituta legal, que trabalha para sustentar o filho, ganha bem, começou a namorar com um menino com problema de deficiência e isso prostituta transa mesmo”. A novela estava legal, mas aí começou uma reviravolta que ela virou uma idiota, culpada. Eu prefiro a outra, a Simone. Ela é mais real apesar de muito desonesta. A novela toda foi horrível, detestei.
BM – Fale de sua convivência com o Flávio, seu marido.
GL – Moramos em Santa Teresa com o filho dele de 15 anos. Quando ele tinha seis anos, me disse que detestava o nome madrasta e que eu era “quase mãe” dele. Ele é o único filho que criei apesar de não ser meu. Ele passou a noite inteira no Rock in Rio e eu não dormi enquanto não chegou.