É mentira!

Você já mentiu hoje? Se disser que não, pode ter certeza que está mentindo! Não acredita? Então, faça um teste. Você realmente desejou que seu porteiro tivesse um bom dia quando o cumprimentou na portaria ou foi simplesmente modo de dizer? E quando a sua colega de trabalho chegou com um vestido horroroso e você disse que ela está óóóótima? Ainda não se convenceu? Responda a derradeira questão: o seu namorado surge com aquele sorriso lânguido dizendo que vai sair com os amigos (veja bem: só com os amigos!) numa sexta-feira e pergunta se está tudo bem. Você, com um sorriso mais lânguido ainda, diz que sim, mas será que está realmente tudo bem para você? Se você respondeu sim a todas essas questões, parabéns! Você é uma espécie em extinção. Se disse não, convicta, faz parte do grupo dos reles mortais: nada mais nada menos do que 99,999% da população mundial. Embora seja difícil de admitir, sempre fazemos uso de uma mentirinha (boba, que seja) e, na maioria das vezes, as outras pessoas aceitam.

Mas, acredite, se não fosse por essas pequenas mentiras ou meias-verdades, seria impossível viver em sociedade. Aliás, talvez não fosse possível formar a sociedade. Quem garante é o psicanalista Paulo Próspero. De acordo com ele, as mentiras chamadas de sociais são importantes para facilitar o convívio entre as pessoas. “Isso porque a verdade é avassaladora para o ser humano. A mentira não existe por si só, mas pela dificuldade que nós temos em lidar com a realidade”, afirma. Paulo cita a diplomacia como o melhor exemplo disso. “Um diplomata sabe usar e dispensar as informações de acordo com a necessidade e o interesse”, complementa.

São necessários alguns jogos rituais para a sociedade se manter coesa. A mentira tem formas distintas de realização em cada cultura.

O sociólogo Márcio Barbosa Lima vai além e afirma que nós mentimos porque queremos manter os papéis sociais que desempenhamos. “Quando o marido mente para esposa dizendo que o carro quebrou, mas na verdade está tomando chope com os amigos, ele está reconhecendo a legitimidade do papel que ele desempenha como marido, mas quer manter a própria individualidade”, exemplifica Márcio, autor da tese “Mentira, dominação e sociabilidade – Contribuições ao estudo da mentira na vida cotidiana”, pela Unicamp.

Segundo ele, a mentira começa a existir quando internalizamos as regras estabelecidas pela sociedade. Como nem sempre conseguimos cumprir todos os papéis que nos dispomos a ter, seja como esposa, mãe, profissional, amiga ou qualquer outro, precisamos fazer uso das mentiras ou das meias-verdades. A partir disso, começamos a dosar as desculpas que utilizamos a cada dia.

O antropólogo Everardo Rocha prefere não classificar as mentiras sociais como mentiras. Essa relação de verdade e mentira, neste caso, não existe para ele. Para ele, o que importa é a sociabilidade. A verdade não está no conteúdo, mas sim na relação entre as pessoas. “A verdade é que eu desejo manter uma relação social com você”, diz. Isso quer dizer que, quando você diz “bom dia” para uma pessoa, a sua real vontade é manter um contato social com a pessoa, fazendo isso de uma maneira gentil e cordial.

Você não necessariamente precisa ser um Pinóquio total, mas, de vez em quando, você arruma aquela desculpinha para não ir a uma festa, certo? A jornalista Adriana Pedroso passou por uma situação inusitada durante a temporada que passou no Canadá. Sabe aquela desculpa que passamos mal e, por isso, não pudemos ir a uma festa? “Lá eles levam a sério e todos ficam preocupados com a sua saúde”, afirma. Por aqui, é quase uma praxe usar artifícios como esse.

Política mentirosa

Mas por que será que isso acontece? Segundo o antropólogo Everardo Rocha, cada sociedade aceita as diversas formas de mentira de maneiras diferentes. “São necessários alguns jogos rituais para a sociedade se manter coesa. A mentira tem formas distintas de realização em cada cultura”, explica. No Brasil, por exemplo, é relativamente fácil lidar com a mentira dos políticos. Mesmo sabendo que boa parte das promessas de campanha são balelas, a gente continua acreditando… e votando! Em outros países, as pessoas não têm atitudes tão passivas como a nossa.

Everardo aponta uma possível justificativa para o caso. “Sempre tivemos uma relação distante entre Estado e sociedade, desde a época de colônia. As relações sociais sempre foram fortes e as públicas, fracas, por isso o descaso que temos com o país. Queremos o Estado fora de nossas vidas”, justifica o antropólogo, lembrando que as relações de amizade sempre foram mais fortes que a nossa ligação com o governo.

Já o sociólogo Márcio Barbosa Lima credita esse comportamento às sociedades autoritárias, como a nossa. Ele cita os escravos que, para garantir a manutenção de suas práticas religiosas, precisavam arrumar formas de disfarçar os seus cultos, como, por exemplo, batizando as entidades da umbanda com nomes de santos católicos. Na terra da malandragem, comportamentos assim são perfeitamente aceitáveis.