Eles não fazem parte da família – mas é como se fizessem, sabe? Ganham o título de tio, tia, primo, afilhado, às vezes até de irmão. Apesar de não compartilharem o mesmo sangue, os agregados – aqueles “parentes” que a gente escolhe –, em muitas ocasiões, são mais chegados e queridos que os tios, primos e irmãos propriamente ditos. Seja pela carência de familiares com quem realmente se tem afetividade ou simplesmente por extrema afinidade com alguém que não é teu parente nem de décimo grau, toda família tem um agregado que se preze. Para mostrar que eles formam uma classe de entes que merece ser levada em conta, fomos atrás dos mistérios que estão por trás desses parentes não-oficializados.
Não é preciso falar em adoção para provar que o sangue não é nem de longe a coisa mais importante dentro da estrutura familiar. Ao eleger – ou “adotar” – um agregado, também estamos mostrando que o que conta mesmo na hora de formar uma família é o amor, a amizade e a confiança. A estudante de Direito Fernanda Amorim, de 22 anos, diz que, de todas as suas primas, a que ela considera mais próxima é exatamente a que não compartilha nenhum dos seus sobrenomes. “É até estranho dizer que ela não é da família, porque na verdade ela é! Meus pais a adoram, minhas irmãs também. Acho que ela é a pessoa que mais tem intimidade com todo mundo na minha casa. Com ela não tem cerimônia nenhuma, porque além de todo mundo a adorar, já somos íntimos há muito tempo. Ela chega a hora que quer, dorme, come, viaja com a gente, é amiga da família. Ela é mais minha prima do todas as outras primas de sangue”, afirma Fernanda.
A contadora Vanessa M., de 28 anos, também tem uma prima “arranjada” que demonstra ser mais de sua família do que muitos parentes oficiais. “A Paulinha é casada com o meu primo, mas é tão querida pela família que tem o poder de juntar a gente. Ela se dá superbem com a sogra, nós também a adoramos, então ela acaba agregando todo mundo”, diz a pseudo-prima. E é nos momentos mais difíceis que se percebe como a relação entre agregados pode ser forte e verdadeira. “A morte da minha avó me fez refletir muito sobre a presença da Paulinha na família. Foi ela que vestiu a vovó para o enterro. Isso me emocionou muito, porque nós não sabíamos a quem recorrer. Para mim seria muito traumático e ela se ofereceu prontamente. Na verdade, ela fez questão. Ela disse que vestiria e quando eu a ouvi dizer isso, senti como se fosse avó dela também, avó de verdade. Da mesma maneira como a considero minha prima de verdade”, revela Vanessa.
E não é só de primos que se faz bons agregados, não. Aliás, tios que não são irmãos nem do pai nem da mãe têm aos montes por aí. Não importa a árvore genealógica do candidato a agregado, porque a força da consideração sempre fala mais alto: se a pessoa tem todos os atributos para exercer a função de parente e já o faz, pronto: está eleita titio, titia ou seja-lá-o-que-for de consideração. Parece até que as pessoas têm mais gosto em agregar um ente querido que não é da família do que em desfrutar de um laço de sangue, já estabelecido. “A filha da afilhada do meu pai é minha afilhada. Mas, apesar desse vínculo, eu não vejo muito a menina, não temos muita intimidade. Quem eu tenho por afilhada mesmo é a filha da minha empregada. Ela cresceu vindo com a mãe para o trabalho e hoje está com sete anos. Chamo ela de ‘Pequena’. É uma gracinha, linda e carinhosa. Me conquistou completamente. Simplesmente adoro a menina, e acho que ela também me adora. Não a chamo de afilhada, não, mas trato como se fosse. Pago a escola dela e adoro trazer um presentinho… Ela sim eu sinto como parte da família”, compara a advogada Cláudia F, de 32 anos.
Uma vantagem considerável que os agregados têm em relação aos parentes legítimos: terem sido escolhidos, e terem se unido voluntariamente. A terapeuta familiar Vera Soumar chama a atenção para essa diferença: “Pode haver, numa família, grande empatia de um irmão pelo outro, assim como tem famílias onde há completa desunião entre os irmãos. Eu não posso deixar de ser irmão ou pai de alguém, nem tio ou sobrinho de sangue. É uma união biologicamente “cobrada”, digamos assim. Já nos agregados, quando há este amor, ele é natural, ocorre por uma empatia, é uma escolha. Eu posso gostar tanto de alguém que “agrego” ele como meu tio, quero ela tão bem como minha prima, como se fosse minha irmã… Há um sentimento tão profundo e verdadeiro, que existe o desejo de transformar esta pessoa querida em alguém da família, como uma maneira de não perdê-la. Pois a família ainda é uma estrutura que transmite segurança, é a nossa base, é da onde viemos, é a nossa história, o começo de tudo, nossas raízes”, esclarece Vera.
Isso não significa, entretanto, que a relação entre agregados esteja imune de conflitos. Assim como dois melhores amigos brigam e irmãos que se amam de paixão às vezes se esbofeteiam, pode acontecer de um agregado ser deserdado temporariamente. Para a amiga-agregada da diretora de arte Paloma G., esse período de afastamento ainda não acabou. Também, a história de Paloma e sua agregada reserva uma particularidade. Ou melhor, um certo desequilíbrio, porque, ao invés da tal amiga ser adotada pela família de Paloma, aconteceu foi o contrário. “Eu e ela sempre nos demos bem, saíamos muito, adorava a companhia dela. Sempre recebo amigos em casa e isso não incomoda meus familiares. Mas às vezes ela aparecia sem avisar. Começava um papo com a empregada, fazia um sanduíche e a coisa ia rolando. Até aí, nada demais. Mas percebi que ela era extremamente carente. Sempre teve uma relação ruim com a própria família e por isso se apega muito às pessoas que conhece”, analisa Paloma, que, um certo dia, acabou ferindo os sentimentos da amiga. “Ela estava lá em casa e eu disse que precisava me arrumar porque ia sair pra um jantar de família. Imediatamente ela perguntou onde e a que horas, achando que eu ia convidar. Mas repeti que era um jantar de família e ela fez uma cara que foi um misto de decepção e ódio. Começou a discutir e disse com raiva: ‘eu achava que fazia parte da sua família’. Desde então, tenho esperado ela ligar. Quero falar com ela, mas não me sinto obrigada, e sim agredida. Tem pessoas na minha família que, apesar de não serem parentes, são consideradas tias e primos e mesmo assim sabem respeitar o nosso espaço. Não pode forçar a barra”, afirma Paloma.
Vera Soumar confirma que a ausência de uma relação saudável com os próprios familiares pode ser motivo para uma pessoa se enxergar como integrante da família de outra. “Alguém que não tem uma boa família e fica amiga de uma pessoa que tem uma família ‘ideal’, acaba adotando a família inteira. Aí passa a querer viver só na casa dessa amiga. Pode ser que nem goste tanto da amizade, mas o calor que aquela casa lhe traz passa a ser algo inevitável, necessário. Essa carência pode fazê-la distorcer a realidade e ela começa a se sentir literalmente da família, ficando até na casa quando a amiga sai”, explica a terapeuta, que, por outro lado, não vê problema algum em agregar não parentes e tê-los como verdadeiros familiares. “Acho super-saudável uma pessoa ter entes queridos agregados. Assim como acho super-importante a família valorizar o amor que a mantém unida, se não ela é só uma família só para fotografia, sem sentimento. O relacionamento familiar depende de cada um, e cada família tem a sua dinâmica. Mas todas devem ter afeto, compreensão, amor, respeito, e, principalmente, saber se doar um pelo outro. Assim é para mim uma verdadeira família”, conclui Vera Soumar.